sexta-feira, 6 de maio de 2011

Dois Verões

Uma edição relativamente recente é a prova de que a literatura russa é sempre surpreendente. Em 2003, foi publicada, pela editora Companhia das Letras, a obra Verão em Baden Baden, de Leonid Tspipkin, traduzida diretamente do russo por Fátima Bianchi. Obra de relato febril de um médico apaixonado por literatura que escrevia apenas para si. Escrito em quatro anos, Verão em Baden Baden estruturou-se exatamente entre os anos de 1977 e 1981, período em que sua veiculação seria impossível na Rússia Soviética. Levado clandestinamente para terras americanas, foi apresentado em um seminário dedicado a imigrantes russos e, a partir de então, difundiu-se em pequenos círculos literários porém só ganhou envergadura através da tradução para o inglês de Susan Sontag (que tem a introdução traduzida na edição brasileira por Rubens Figueiredo) que foi a primeira a elevar o livro à condição de obra-prima literária que condensa elementos de um século de ficção e paraficção.
Verão em Baden Baden é uma recriação da viagem do famoso escritor realista russo Fiodor Mikhailóvitch Dostoiévski e sua jovem esposa Anna Grigorievna à Europa Ocidental, no ano de 1867. Neste ano, o casal deixava a Rússia, fugindo das dívidas de azar contraídas por Dostoiévski e, rumo a países como França, Alemanha e Inglaterra, é que a magia acontece. No Ocidente, tal como na Rússia, era verão, porém, o calor que se sentia era a da pulsão do capitalismo mergulhado num caldeirão consumista e a clara visão socialismo pseudo-fraterno que ludibriava até mesmo os mais castigados pela miséria. Essas impressões já haviam sido registradas ficcionalmente pelo próprio Dostoiévski em Notas de Inverno sobre Impressões de Verão (traduzido do russo para o português por Boris Schnaiderman), mas foi através de Tsípkin, um fã, que os passos de Dostoiévski e de Fédia (um reflexo do romancista) convergem para uma só viagem, a do romance Verão em Baden Baden que, como numa fita de moebius, dois lados de uma história podem ser estranhamente uma única coisa.
Com realidades justapostas e ficções ficcionalizadas, Leonid Tsípkin orquestra sua obra por meio de frases longas que dão amplitude e profundidade ao enredo que pulsa exatamente como a vida foi sentida em duas esferas distintas, na criação de Dostoiévski e na recriação de Tsípkin.  Como num labirinto de experiências, Verão em Baden Baden abre as portas da cultura russa aos leitores mais atentos que sejam capazes de perceber às alusões feitas constantemente à tradição cultural russa. As cenas evocam a memória invernal que traz consigo as lembranças de séculos de resistência literária encabeçada por grandes escritores russos como Púchkin, Gógol, Blok, Biéli, Mandelstam, entre muitos outros. A cada página, somos guiados por uma narrador sem nome mas que conhece, como poucos,  o mundo de Dostoiévski e todas as suas nuances que vão da desordem psicológica à insanidade e da mesquinharia ao brilhantismo. Na remontagem de Tsípkin, a história começa com o já mencionado narrador silencioso que viaja para Leningrado (atual São Petersburgo) num tempo de imponentes sombras geladas. Em uma viagem paralela, Fiódor Dostoiévski e sua esposa Anna Grigorievna estão a caminho de Baden-Baden, deixando para trás os credores e esperançosos em uma virada nas roletas. Fédia (Fiódor) é alguém extremamente imprevisível que oscila entre atitudes grosseiras, preconceituosas e emocionadas demonstrações de afeto para com sua jovem esposa.
Com essas intermitências do ser, Tsípkin concede à sua narrativa um fluxo de consciência magistralmente retirado das turbulências do casal Dostoievski. Realidade imaginada e ficção a esta altura já estão muito imbricadas no romance, fato que faz de Tsípkin um escritor com uma habilidade única de conviver com seu ídolo literário numa terceira margem, num ambiente que é de criação própria e que dá à narrativa um tom mais forte de posicionamento frente à vida. Ao mesmo tempo que Tsípkin faz Dostoiévski ressuscitar mais de cem anos depois, ele tenta se afastar das influências do mesmo, de um destino que o desespera, o oprime.
Um sentimento de vertiginosa queda livre permeia o livro Verão em Baden Baden. Tudo é latente – a crença no amor, os desmaios devido à epilepsia e o feitiço dos mistérios da arte que se apresentam envoltos em conflitos motivados pela inveja e pela paixão. Até o seu ponto final, há uma luta por uma herança poderosa de cultura e história russas que é exaustivamente trabalhada pelo autor que foi um escritor moderno e que nos deixou um caminho aberto para uma nova escrita, uma escrita possivelmente ainda mais fiel à verdade do que a do mestre russo de realismo, pois, nesse romance, se falou não da verdade absoluta, constituída, falou-se sobre a verdade de um homem. Não de um mito, mas de um homem, Fiódor Mikháilovitch Dostoiésvki. Então, feito está o convite para que todos leiam Verão em Baden Baden, uma obra sensível e inerente às vicissitudes da vida.

Leonid Tsípkin - Nasceu em Minsk (Bielorrússia), em 1926. Foi médico de profissão e não se dedicou à literatura profissionalmente, apesar de apaixonado por ela. Seu único livro publicado foi Verão em Baden Baden, em 1981, que teve como base um manuscrito levado na clandestinidade para os Estados Unidos da América. Leonid Tsípkin morreu em 1982 no dia em que faria 56 anos de idade e não apreciou a repercussão de sua obra. Verão em Baden Baden foi traduzido do russo para o português por Fátima Bianchi e foi publicado pela editora Companhia das Letras, em 2003.

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